O Que se Conta Daqui...

Pra quem gosta de escutar ou criar causo... Bem vindos! Tatiana Baruel e Érica Turci

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Local: São José dos Campos, São Paulo, Brazil

sábado, novembro 11, 2006

O Que se Conta Daqui...


O Que se Conta Daqui... foi para nós um reencontro com o fascinante imaginário do jacareiense, através dos "causos" da cidade.

Realizado pela LIC – Lei de Incentivo à Cultura, da Fundação Cultural de Jacarehy "José Maria de Abreu" e patrocinado pela empresa CEBRACE, o livro é o resultado de uma pesquisa bibliográfica e entrevistas com os portadores de histórias de Jacareí, moradores da cidade, professores, pesquisadores e artistas.

Assim como nos "causos", o livro mistura fatos verídicos e ficção, personagens históricos como Bartolomeu Fernandes de Faria e seres sobrenaturais como o Corpo Seco.

O Que se Conta Daqui... nos mostrou uma Jacareí surpreendente e pouco conhecida para os mais jovens, a cidade dos pescadores, das assombrações, das grandes festas populares, dos trens e de muitos "causos" intrigantes.

O conteúdo do livro será publicado neste blog, na íntegra. Nossa pesquisa não pára, se você quiser fazer comentários, enviar "causos" ou trocar figurinha, fique à vontade!

Para nós é um grande presente compartilhar O Que se Conta Daqui... com os internautas de todas as idades.

Ao ler o livro, esperamos que você tenha a mesma satisfação que tivemos ao realizá-lo.

Boa Leitura!

Equipe técnica:

Coordenação da Pesquisa: Érica Turci

Pesquisadoras: Tatiana Baruel e Érica Turci

Texto: Tatiana Baruel

Ilustrações: L. Cid

Projeto gráfico: Tiago Lopes

Revisão: Maristela Lemes

quarta-feira, novembro 08, 2006

Uma história pode ter muitos começos e esta se deu no tempo em que os deuses dos índios andavam por aqui.

Diz o povo antigo que há muitos anos um deus cobra apavorava toda essa região. E de tempos em tempos, as tribos se reuniam para oferecer a ele as armas dos guerreiros mais corajosos e uma virgem em sacrifício.

Numa dessas oferendas, o guerreiro escolhido para levar as armas se deparou com a virgem que seria sacrificada, a flor mais graciosa que os seus olhos já tinham visto.

O índio se encantou com tanta formosura. O amor laçou os dois corações e ele pediu aos deuses da sua tribo proteção para combater a cobra medonha e salvar sua amada.

Os deuses ficaram tão comovidos com a coragem do índio que resolveram ajudar. Mandaram a terra se abrir e das suas profundezas saiu uma lança, a arma para o duelo. O índio se curvou, recebeu a lança e neste momento soube que só ganharia a peleja se cortasse a cabeça da cobra num só golpe.

O guerreiro se sentiu protegido por seus antepassados e pelos deuses do seu povo, por isso, não teve medo de perder sua vida naquela batalha.

Foi a luta mais dura de que já se ouviu falar nessas terras, um índio contra um deus!

Mas o amor que o guerreiro sentia era maior que qualquer artimanha do inimigo. O índio juntou todas as forças que tinha e com um corte preciso arrancou a cabeça do deus cobra.

Por sua coragem, o guerreiro salvou a vida de sua amada e devolveu a paz para todas as tribos da região, que comemoraram a vitória durante três luas.

O corpo do deus cobra caiu ferido sobre a terra e de tão grande e pesado, abriu um sulco que se desfez em água. E foi assim que nasceu o rio Paraíba.

As terras que se ergueram em volta do rio formaram duas serras que lembram o amor do guerreiro e da virgem. As serras do Mar e da Mantiqueira, eternamente juntas, lado a lado. Esse foi o presente dos deuses.

Terra de jacarés

Muito tempo depois, surgiu nesse pedaço um arraial. Lá por volta de 1650, foi construída a primeira capela e o arraial passou a se chamar Vila de Nossa Senhora da Conceição da Paraíba.

Só depois de 1700 é que a vila recebeu o nome de Jacarehy, mas até hoje não se sabe direito por quê...

Alguns contam que foi por causa dos jacarés que nadavam nessas águas. Outros dizem que Jacarehy, na língua dos índios “y agûa yerê ei”, significa “rio de volta desnecessária”.

No fim das contas, as duas histórias têm sua razão de ser. Por aqui
zanzavam mesmo muitos jacarés e o rio também possui curvas pra mais de metro que só servem pra enfeitar.

O Homem que desafiou a Coroa


Jacareí era um ponto de parada de tropeiros e viajantes que aqui descansavam e se abasteciam, antes de tentarem a sorte atrás do ouro das Minas Gerais.

Muita gente da vila de Jacareí tinha uma doença, o tal de bócio, que deixava um papo no pescoço da pessoa que não comia sal.

Os viajantes contavam que nunca tinham visto uma terra com tanto “papudo” e durante muito tempo, o povo daqui ficou conhecido por esse apelido.

Pedro Mulato Papudo também era o nome de um capanga de Bartolomeu Fernandes Faria, o homem mais perigoso da região.

No ano de 1710, aconteceu um feito que levou o nome de Bartolomeu para todo o Brasil.
Naquele tempo, muitos homens faziam justiça com as próprias mãos e o que mandava era a “lei do bacamarte”.

Bartolomeu era muito poderoso e tinha uma fazenda na região onde se ergueu a capela dos Remédios, na divisa entre Jacareí e Guararema. A fazenda abrigava mais de duzentos capangas e escravos, uma misturada de gente de vários jeitos e lugares.

Era uma época de muita carência, as mercadorias vinham de outras cidades e pra chegar aqui o transporte levava dias.

Só quem podia vender os alimentos eram os amigos da Coroa, as pessoas que tinham autorização de Portugal para comercializar os produtos. E pra piorar, havia os atravessadores que colocavam o preço lá em cima.

Nesse período, o sal já era uma das mercadorias mais importantes porque conservava as carnes e servia de alimento para o gado, além de servir de tempero para a comida dos homens.

Pela Coroa, o sal deveria custar 1.200 réis por alqueire, mas os atravessadores de Santos (que de bobos não tinham nada) escondiam grande parte do sal para o preço subir. Depois de tanto procurar, o povo ficava desesperado e acabava pagando o preço que os atravessadores pediam.
Em Santos, o sal era vendido por uns 8.000 réis por alqueire e nas vilas “serra acima”, como Jacareí, custava uma fortuna que ia de 20.000 a 30.000 réis! Essa situação durou muitos anos, o povo xingava, esperneava, mas de nada adiantava.

Até que um dia, Bartolomeu decidiu dar um basta naquela situação e desceu a Serra com seus duzentos homens, todos armados com flechas e bacamartes.

Apesar de não existir nem cheiro de telégrafo, muito menos telefone, a fama de Bartolomeu chegou a Santos antes dele. Dizem que ele já tinha despachado uns infelizes em Mogi das Cruzes e em Jacareí, por isso, quando pisou na cidade o povo entrou em pânico.

Foi um alvoroço e todo mundo correu pra casa ao ver aquele bando enorme, armado até os dentes.

Bartolomeu entrou com a maior facilidade no Armazém de Sal porque nenhum guarda foi louco para reagir diante daquele batalhão. Mandou chamar o contratador do sal, dando sua palavra que não iria fazer mínima ofensa e pagou pelo sal o preço justo, os 1200 réis por alqueire. Pagou também os impostos que a Coroa exigia, no valor de 400 réis, tudo conforme a “lei”.

Bartolomeu mandou tirar todo o sal que os burros podiam carregar e era sal que não acabava mais...

Só depois de muitas horas que o bando já tinha saído da cidade é que a infantaria tomou coragem para seguir o rastro de Bartolomeu. Mas o homem era muito esperto e mandou seu bando destruir todas as pontes do caminho para que os soldados de Santos não conseguissem chegar até eles.

Todas as tropas que vieram prender Bartolomeu em Jacareí foram recebidas a balas e flechas. Ele morava numa casa-forte, com muros altos e muito bem vigiada.

A afronta de Bartolomeu desmoralizou os governantes da época e a Coroa de Portugal ofereceu uma recompensa pela sua captura.

E não foi só isso que Bartolomeu aprontou com a Coroa, não...

Nesse mesmo ano, 1710, acontecia em Minas Gerais uma guerra entre os bandeirantes que tinham encontrado as minas de ouro e os portugueses que queriam se apossar delas. Era a Guerra dos Emboabas.

"Emboaba" é o nome de uma ave que tem as patas cobertas de penas. Os bandeirantes usavam esse apelido para gozar dos portugueses que nunca tinham pego numa foice e desfilavam com roupas pomposas e emplumadas.

José Grande Carijó, outro capanga do Bartolomeu, contou que uma vez passaram alguns forasteiros por Jacareí levando armamento e munição para ajudar os portugueses. Bartolomeu não teve dúvida, confiscou todo o carregamento e mandou os forasteiros seguirem caminho de mãos vazias para as Minas Gerais.

À medida que o tempo passava, aumentava o número de pessoas que caçavam Bartolomeu e seu bando.

Certa altura da história, Bartolomeu e seus homens fugiram pra região de Bom Jesus de Iguape. Pedro Mulato Papudo contou que eles foram pra lá cumprir promessa, agradecer a proteção do Bom Jesus e armar estratégias de defesa.

Só em 1718, oito anos após o episódio do sal, é que prenderam Bartolomeu. Alguns de seus escravos e capangas conseguiram fugir e os que não tiveram melhor sorte foram mandados para as aldeias.

Bartolomeu foi enviado pra Bahia e lá ficou na prisão durante muitos anos, até morrer velho, pobre e “bexiguento”. Dizem que alguns padres saíram recolhendo esmola para o seu enterro e em pouco tempo, arrecadaram 800.000 réis, um dinheirão pra época. Até na hora da sua morte, Bartolomeu surpreendeu e pregou uma peça na Coroa.

Fuzuê da “bexiga”


“Bexiguento” era como se chamava o sujeito que tinha varíola, uma doença que já matou muita gente nesse mundo. O doente ficava com o corpo cheio de bolhas escuras, parecidas com bexigas e quando a doença avançava muito, podia ficar cego e até morrer.

O povo daqui tinha muito medo de pegar a “bexiga” e mais ainda de tomar a “vacina” que existia naquela época.

Virava e mexia acontecia um cortejo arrepiante na cidade. Era assim, um cirurgião barbeiro andava pelas ruas de Jacareí arranhando os braços de quem não tinha a moléstia.

Depois disso, os escravos doentes eram obrigados a colocar pus em cima dos arranhados. Dessa forma o povo ficava imune à “bexiga”, na marra.

Mas ninguém acreditava que o pus de um “bexiguento” pudesse mesmo impedir a doença e todo mundo corria pra se esconder no mato ou dentro de casa.

Foi preciso que o governador desse uma ordem para a polícia caçar e levar os fujões pra a cadeia. Lá, as pessoas eram vacinadas à força, pagavam uma multa e só depois é que podiam voltar pra casa.

A Padroeira e a Cobra Grande


Conta o povo antigo que o espírito do deus cobra nunca deixou de rondar o rio Paraíba.

Mais ou menos na época em que Bartolomeu foi preso, alguns pescadores começaram a desaparecer em Jacareí. A população não entendia esse sumiço e todos os moradores ficaram preocupados.

Numa tarde, duas irmãs estavam lavando roupa à beira do Paraíba e viram uma cobra imensa devorando as barrancas do rio. As lavadeiras correram até a cidade, gritando de medo e contaram o que tinham visto.

A cidade ficou em polvorosa! Dizem que o tamanho da cobra ia da igreja Matriz até as bandas de Guararema. Contam ainda que os mais corajosos descobriram um jeito de montar na Cobra Grande, sem se machucar. Esses homens seguiam correnteza abaixo, montados nas costas da cobra como se ela fosse um boi comprido.

O caso é que a Cobra Grande continuou comendo os pescadores e as barrancas do rio. Então, o povo da cidade resolveu pedir ajuda da padroeira e organizou uma procissão para Nossa Senhora da Conceição.

A procissão saiu da Matriz com muitos fiéis segurando suas velas, passou pelo pelourinho, andou pelos arredores e voltou pra igreja.

Os escravos também queriam demonstrar a sua fé, mas como eles não podiam participar de nada, fizeram sua própria procissão. Esculpiram uma imagem da santa em barro queimado e seguiram rezando até o rio. Quando chegaram no Paraíba, jogaram a imagem na água na intenção de acalmar a serpente.

Nessa hora, a imagem de Nossa Senhora começou a cantar.

Aos poucos, a serpente se levantou das águas e foi seguindo a imagem que cantava. Os escravos ficaram alumbrados com tudo aquilo e sentiram um perfume de rosas espalhado no ar...

A imagem de Nossa Senhora foi descendo o rio, sempre cantando, e a Cobra Grande atrás dela até que foi-se embora pra bem longe.

De tão cansada, a imagem da santa deitou no leito do rio e ali desfaleceu. Seu corpo se partiu e, dias depois, ela foi pescada perto de Guaratinguetá.

Dizem que essa é a mesma imagem que hoje todo mundo conhece, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

Outros contam que a Cobra Grande adormeceu dentro da terra e que sua cabeça está embaixo do altar da Matriz. O corpo passa pela Igreja do Avareí, mas o rabo da cobra ninguém sabe onde está.

O povo antigo fala que a imagem de Nossa Senhora da Conceição não pode sair da Matriz e, se isso acontecer, a Cobra Grande vai se levantar e destruir Jacareí.

E dizem também que a Cobra Grande se mexe na terra. Na Igreja do Avareí, os bancos já apareceram várias vezes revirados, sem explicação e o povo acha que isso é a Cobra Grande se acomodando debaixo do chão.

O Barqueiro da Meia-Noite


Depois que a Padroeira deu um jeito na Cobra Grande, a cidade ficou um bom tempo sem ter reboliço. O povo voltou a usar o rio como sempre, para pescar, nadar, lavar roupa e dar uns passeios.

Ainda não existia ponte em Jacareí e as pessoas precisavam dos barcos para passar de um lado ao outro do Paraíba.

Numa ocasião, começou a aparecer um Barqueiro, que na verdade, era uma alma penada.
No começo só os animais perceberam a assombração e toda vez que ela passava de barco era aquela barulheira agoniada de cachorros e cavalos.

O Barqueiro aparecia sempre depois da meia-noite, nas noites de nevoeiro. Naquele tempo fazia mais frio que hoje, por isso, era muito comum ver a neblina que vinha das serras e descia até o rio parecendo uma correnteza branquinha.

O Barqueiro do além começou a ser reconhecido porque aparecia todas as segundas, quartas e sextas-feiras de neblina (nos outros dias o povo não sabia onde ele remava). E sempre gritava:

- Oi, passagem!

Esse era o sinal para o povo que estava por ali correr e escapar da
assombração.

Dizem que numa festa de São Gonçalo, dois compadres e uma comadre foram buscar água no rio e escutaram o Barqueiro gritando:

- Oi, passagem!

Um dos compadres, que era um sujeito saliente, respondeu:

- Se você for homem passe pra cá!

Foi aí que eles ouviram um barulho de gente caindo na água e quando
olharam, não puderam acreditar! A assombração veio correndo atrás dos três compadres, por cima da água, e eles saíram tão avoados que esqueceram até da lamparina na beira do rio...

Quando chegaram perto do terreiro de São Gonçalo, o Barqueiro sumiu e no mesmo segundo eles escutaram de novo uma voz, lá do outro lado do rio:

- Oi, passagem!

A assombração foi ficando cada vez mais ousada. Numa noite, durante o velório de sua filha, Seu Quinzote ouviu lá do outro lado do rio alguém gritar:

- Oi, passagem!

Seu Quinzote que ainda não conhecia o Barqueiro, pensou que
era seu amigo Juvenal querendo atravessar o rio. Então desceu a barranca e foi remando para encontrar com o amigo, mas quando chegou do outro lado, uma coisa muito pesada pulou e quase afundou sua canoa.

O homem chegou em casa branco e ficou três dias mudo. Depois que recuperou a fala, contou que um barqueiro enorme tinha pulado na sua canoa e disse:

- O que te salva são essas suas rezas.

A partir deste acontecido, Seu Quinzote passou a ouvir todas as noites a assombração gritando no Paraíba. Para não ser mais incomodado, resolveu mudar pra um morro bem longe do rio.

O tempo foi passando e o Barqueiro começou a aparecer em qualquer noite, não só segundas, quartas e sextas. Além disso, ele pegou gosto em chupar o sangue dos cachorros e também mudou o grito. Ao invés de pedir passagem, ele anunciava:

- Ói quem vem lá!

E aí, a pessoa tinha que responder um determinado nome (que era o nome do Barqueiro) porque isso significava que ela não tinha medo dele, sabia com quem estava lidando e não ia entrar no barco assombrado.

Quem não sabia responder o nome dele era levado para o mundo das
almas penadas.

Dizem que os mais antigos conhecem o nome do Barqueiro, mas não revelam para que ele não volte a assombrar o Paraíba.

Chuva de sapos


Muitos anos depois do Barqueiro sumir, assim que construíram a primeira Ponte Velha, apareceu outra assombração no rio. Mas essa não tinha nome.

Uma vez, contaram para o Zé do Angico que tinha chovido sapo de cima da ponte e ele riu até não poder mais, debochando dos companheiros.

Até que um dia, ele passou de canoa embaixo da ponte e começou a chover sapo de todos os tamanhos e cores. Aliás, não era só sapo, chovia rã e perereca também.

Quando Zé do Angico olhou pra cima, viu uma assombração que crescia de um lado ao outro da ponte. Ela chacoalhava e soltava uma risada ardida, enquanto jogava toda sorte de saparia na cabeça dele.

Depois desse episódio, Zé do Angico passou a pescar de guarda-chuva.

O Poço de Ouro do Rio Abaixo


No começo de 1800, não existia banco e os coronéis guardavam em baús os seus bens. Eram moedas de ouro, prata e cobre, jóias, pedras preciosas e os dotes das filhas.

Mas não bastava guardar o tesouro, ele precisava ser muito bem escondido. E um dos melhores esconderijos da época era dentro da parede de um poço.

Certa feita, um fazendeiro muito rico do Rio Abaixo mandou seus escravos cavarem um buraco na parede de um poço e depositarem lá o seu baú.

Mas o fazendeiro perverso, com medo de que os escravos contassem o mapa do tesouro ou até mesmo roubassem suas riquezas, mandou sacrificar um por um. E todas as maldições caíram sobre a cabeça desse senhor de escravos.

Dia após dia, ele minguava até ficar fraco, amarelo e sem pêlos no corpo, parecendo um Corpo Seco. Sua voz foi sumindo e ele passou a andar com duas bengalas.

Os negócios desandaram e ele perdeu muitas propriedades que tinha.

Até que veio uma grande cheia no Paraíba. As águas do poço subiram e começaram a aparecer as moedas de ouro do seu baú.

Soltando fogo pelas ventas, o fazendeiro mandou um escravo mergulhar no poço e atar uma corda na arca. Ordenou aos outros que preparassem os animais de carga para puxar seu baú do tesouro, antes que as águas levassem tudo. Mas na escuridão do poço, o escravo se atrapalhou com as cordas e morreu afogado.

Nesse momento, o céu ficou preto, cortado por trovões e caiu um temporal muito feio. E tudo foi puxado pra dentro do buraco, os escravos, os cavalos, os burros e o fazendeiro. O poço tragou tudo.

Depois desse infortúnio, dizem que muitos se aventuraram a procurar o tal tesouro do Rio Abaixo, mas até hoje ele não foi encontrado.

Corpo Seco


Antigamente tinha muito Corpo Seco em Jacareí. O povo dizia que quando a pessoa era muito ruim em vida, depois de morta nem a terra aceitava e ela virava Corpo Seco.
O corpo da pessoa não se desfazia, secava. E no cemitério, às vezes a assombração tirava a mão ou o pé pra fora da terra, esse era o sinal de que ela queria sair.

Depois que saía, o Corpo Seco grudava nas costas de alguém e essa pessoa não tinha como se livrar dele, era obrigada a levar o traste onde ele quisesse. Se levasse pra outro lugar, a assombração não parava de azucrinar e não desgrudava das costas.

Geralmente o Corpo Seco pedia pra ficar perto de onde ele tinha morado quando era vivo. Chegando no lugar escolhido, quase sempre um descampado, o Corpo era amarrado numa árvore. Depois disso o “carregador” tinha que ir embora sem olhar pra trás, para não ser hipnotizado pela assombração.

No pedaço onde o Corpo Seco escolhia era ele quem mandava e sempre tinha pé-de-vento e tempestade.

Certa manhã, enquanto um coveiro arrancava as ervas daninhas, um Corpo Seco tirou a cabeça pra fora da terra e começou a falar. Era uma tal de Cida Tramela, que tinha sido uma filha muito ingrata.

Quando isso acontecia, era preciso chamar a mãe do Corpo Seco para bater nele com vara de marmelo benta, três vezes, antes dele sair do cemitério.

Enquanto foram chamar a mãe da Cida Tramela, o coveiro pediu pra avisar nas casas que ia sair um Corpo Seco, por volta do meio-dia.

Os moradores da região do Avareí já sabiam o que acontecia, por isso, as mulheres recolhiam as roupas do varal e todo mundo entrava pra casa.

O coveiro e outro moço saíram com a assombração nas costas, passaram pelo córrego e por uma porteira. Andaram mais uma légua e meia e o Corpo Seco pediu para ficar ali.

Os dois homens amarraram a assombração numa mangueira e foram saindo. Assim que deram os primeiros passos, o Corpo Seco chamou os dois e disse que se tinha enganado. Então, pediu pra ser amarrado perto da porteira porque tinha morado lá antes de morrer.

Na ida, o Corpo Seco já tinha visto a porteira, mas não falou nada porque queria andar mais um tempinho nas costas do coveiro.

O coveiro e o moço ficaram com medo de olhar pra trás e serem hipnotizados, mas o Corpo Seco garantiu que não iria fazer isso com eles.

Mesmo desconfiados, os dois homens acharam melhor obedecer, até porque não tinham outra saída. Por via das dúvidas, o coveiro e o moço desamarraram o Corpo Seco olhando pros lados e não pros olhos dele. A assombração grudou de novo nas costas do coveiro e os três pegaram o caminho para a porteira.

Chegando lá, o coveiro e o moço amarraram o Corpo Seco num ipê roxo e foram embora.

Durante o período em que o coveiro e o moço estavam carregando o Corpo Seco aconteceu uma ventania na região do cemitério. As roupas esquecidas nas cercas rasgaram, algumas casas começaram a sacudir e o povo viu um balão preto rodando em cima dos telhados.

Era um balão muito grande e estranho que ficou contornando as casas até os dois homens retornarem. Quando o coveiro e o moço estavam voltando, viram o balão preto se afastar e descer onde estava amarrado o Corpo Seco.

Dizem que no Parateí existia um Corpo Seco que ficava amarrado numa árvore e tinha um colar de ouro muito bonito, que brilhava de longe.
E todo mundo queria o colar. O pessoal fazia uma vara de taquara comprida, com um gancho na ponta, e ia futucar o Corpo Seco.
A vara pegava no colar e subia bem devagarinho, mas quando passava pelo queixo do Corpo Seco, ele fazia:
- “Schiiiiiiiuu!”
E todo mundo saía correndo.
Nessa hora começava o pé-de-vento. As crianças miúdas gostavam disso porque a ventania era tanta que elas voavam um pouquinho.

As Façanhas do Leitão


Dos muitos homens que passaram por aqui, um resolveu ficar e acabou fazendo fortuna. Esse homem foi João da Costa Gomes Leitão, que veio de Portugal e começou a ganhar dinheiro como tropeiro, fazendo transporte de mercadorias em lombo de burro. Depois de um tempo, ele começou a plantar café, o produto mais importante do Brasil naqueles meados de 1800.

Em 1850, foi proibida a chegada de novos escravos no Brasil. Leitão percebeu logo que vender escravos poderia ser um ótimo negócio, se ele soubesse driblar a Lei. E foi assim que ele fez a sua riqueza, como traficante de escravos.
O coronel enriqueceu e construiu dois casarões, o luxuoso Solar Gomes Leitão, onde ele dava festas e a residência onde ele morava com sua família. Na verdade, coronel mesmo ele não era, mas foi chamado assim porque tinha muito dinheiro e poder.

No Solar, o coronel dava banquetes para os donos de fazendas e os nobres da região, dizem até que D. Pedro II se hospedou lá.

O certo é que o Leitão usava essas festas como desculpa para vender escravos, por baixo dos panos. Entre uma música e outra, ele e os fazendeiros davam uma escapada e negociavam os escravos que ficavam escondidos nos porões do casarão.

De tão rico, o Leitão tinha um banco dentro do Solar e emprestava dinheiro para os seus parceiros e até para o governador da Província. O coronel financiou também um trecho da estrada de ferro “D. Pedro II” que passava pelo Vale do Paraíba e sustentou a família de cento e vinte jacareienses que lutaram na Guerra do Paraguai.

Mas o feito mais impressionante desse homem foi desviar o leito do rio Paraíba. Aliás, até hoje tem gente que acha lorota essa história, mas ela aconteceu mesmo.

O motivo do desvio não se sabe direito. Uns falam que foi para levar água mais perto das plantações do Leitão, outros falam que foi para afastar o rio do Solar e evitar as inundações nas cheias. E alguns dizem que ele fez isso só pra provocar o Barão de Jacareí, outro ricaço da época.
Naquela ocasião, o rio passava ao lado do Solar e bem atrás da Matriz e da Santa Casa, que tinha acabado de ser construída.

Quando correu o boato que o Leitão queria mudar o curso do rio, muita gente esbravejou. O povo chiou pois tinha medo que o negócio desse errado e as águas alagassem Jacareí. E alguns nobres protestaram porque não se bicavam com o Leitão.

Dizem que o estopim dessa história foi num jantar onde o Barão de Jacareí e o Leitão se encontraram, na Rua Direita. O Barão fez chacota do coronel dizendo que ele jamais conseguiria mudar o traçado do rio. O coronel, que nunca levou desaforo pra casa, topou o desafio e retrucou:

- Eu não só vou fazer, como vai ser esta noite!

E o mais incrível é que ele fez...

O Leitão comandou a escavação do novo leito e mobilizou mais de trezentos escravos, que trabalharam pesado a madrugada toda.

A cidade dormiu com o rio de um jeito e acordou com ele de outro, todo mundo ficou de queixo caído.

O rio foi mudado para o lado esquerdo (pra quem está de costas pra sua nascente), na medida de 170 braças, uns 370 metros. E a curva que ele tinha antes de ser desviado aumentou em 1.000 metros.

Mas o serviço não saiu muito bem feito. E o resultado foi que o rio continuou transbordando e procurando o antigo leito.

Toda a região perto do Solar Gomes Leitão e da Matriz virou um brejão que muitos anos depois recebeu o nome de “Esmaga Sapo”. Dizem que quando os filhos do coronel atrapalhavam seu sossego, ele logo mandava as crianças pro brejo, dizendo:

- “Vai caçar sapo!”

E foi daí que surgiu essa expressão tão conhecida até hoje.

O que esse Leitão tinha de rico, tinha de ruim. O povo conta que ele enterrou viva uma das suas filhas dentro de uma parede do Solar. Parece que ele fez isso porque a moça queria se casar com um rapaz pobre, sem eira nem beira.

Mas a perversidade do coronel teve resposta.

Uma vez, caiu uma tromba d’água em Jacareí e ele se irritou muito porque a chuva não passava e iria atrapalhar sua plantação de café.

Bufando de raiva, o Leitão mandou seus escravos atirarem no céu para acertar Deus!

Os escravos se recusaram a fazer tamanha ofensa e então, ele pegou sua arma, saiu no terreiro e começou a atirar pra cima. Nesse instante, a terra se abriu e o Leitão foi engolido por ela.

Depois de tantos feitos e malvadezas, finalmente o coronel sucumbiu. Dizem que no dia do seu enterro colocaram dentro do caixão, no lugar do seu corpo, um talo de bananeira...


O povo conta que o Solar Gomes Leitão é mal assombrado até hoje e que a filha enterrada viva sempre desce as escadas do casarão, depois da meia-noite, com um vestido de festa. Além dela, as almas dos escravos ficam vagando pelos cômodos do Solar e arrastando correntes no chão.

A casa onde o coronel morava também é mal assombrada. No lugar onde ficava a senzala, já ouviram de madrugada alguns barulhos de pessoas conversando, cantando e dançando.

Na cidade ou na roça, Jacareí sempre teve muita assombração...

Saci


Na roça tinha muito Saci, um vultinho que se parecia com um menino pequeno e negrinho. O Saci gostava de reinar em tudo e de assustar quem tinha medo dele, que era quase todo mundo.

Ele tinha vários tipos de assobios, um pra quando estava alegre, outro pra quando fazia estripulia, outro pra quando ajudava os animais, e por aí vai.

O Saci ficava contente com as tempestades e sempre aparecia quando começava a relampejar, dizem também que gostava de rodopiar onde tinha criança. Ele chegava num redemoinho, levantando tudo que tinha por perto, folha, galho, pena de galinha, ia tudo pra cima...

O povo conta que pra pegar o Saci era preciso jogar um terço ou lançar uma peneira trançada em cruz no meio do redemoinho. Só assim ele não escapava.

Durante os anos em que trabalhou na fazenda do Campo Grande, Dona Quitéria era vizinha de um sujeito chamado Manuel. Ela contou que esse rapaz tinha vindo de Pinda e nos tempos de solteiro, pediu a companhia de sete sacis, que iam com ele pra tudo quanto era canto.

O Manuel começou a namorar a Carminha e quando ia na casa da moça levava junto os sacis. Chegando lá, os sete vultinhos ficavam brincando no quintal e depois iam embora com ele.

A Carminha queria morrer com aquilo e tinha muita de vergonha de sair com o noivo na rua, com aquela sacizada atrás. Ela fazia todo tipo de promessa e simpatia pra se livrar dos bichinhos, mas não adiantava.
O tempo passou, os dois se casaram e foram morar na fazenda do Campo Grande, ao lado da Dona Quitéria.

A Carminha continuou rezando, até que seis sacis foram embora. Mas teve um que ficou. Ela chegou até a levar um padre pra tirar esse Saci, mas não adiantou, ele ficou lá.
Dona Quitéria contou que ele vivia batendo na porta de sua casa, tarde da noite, só pra perturbar. Batia e saía correndo.

O marido de Dona Quitéria, seu Tobias, andava sempre com alho no pescoço pra espantar o penadinho. Quase todas as tardes quando o homem ia pegar água, encontrava o Saci pulando em cima do poço e mandava ele chispar de lá.

Nessa fazenda também tinha um cavalo chamado Gigante, que passava o dia todo cansado.
Lá pras quatro da manhã, quando os homens iam pra invernada tirar leite, eles viam o fedelhinho montado no Gigante, correndo pra baixo e pra cima. O cavalo passava debaixo das árvores e o Saci não abaixava, o pessoal via aquele vultinho passando através dos galhos e dando um assobio de traquinagem.

Todo santo dia, o Gigante amanhecia fatigado e com as crinas trançadas. Daí o Manuel tinha que desfazer as tranças com alho na mão, que era a única forma de desatar os nós.

Numa ocasião, o dono da fazenda resolveu dar uma casa pra Carminha e pro Manuel, num lugar mais afastado. O casal ficou muito feliz, a família de Dona Quitéria mais ainda...

Na manhã em que o Manuel e a Carminha iam se mudar, a casa começou a pegar fogo, de repente. Em poucos minutos, ficou inteirinha queimada, não sobrou nada.

Era o Saci que não queria se mudar pra lá. O casal saiu da fazenda com o pestinha e ninguém teve mais notícias deles. Dizem que voltaram pra Pinda.

Lá pros lados do rio do Peixe, que depois virou a represa do Jaguari, tinha outro saci e contam que esse era amigo do Nitinho, um sujeito que não trabalhava, mas comprava tudo. Ele dizia que era ajudado pelo saci, mas nem sempre... Era só quando o bichinho queria.

Quando o saci dava um tipo de assobio, o Nitinho sabia que a pescaria ia ser boa. Então, a água do rio parava de correr e ele pegava tantos peixes que caíam do samburá.

Mas quando o saci não queria, o Nitinho escutava outro tipo de assobio. Aí o vultinho ficava jogando terra e pedra na água e o pescador não catava nada.

O amigo do Nitinho, Vicente do Queijo, morria de medo do saci. Depois que o Vicente viu o penadinho pela primeira vez, não quis mais pescar sozinho e começou a chamar sua mãe, Dona Rosalina, para ir junto.

Se a mãe fosse com ele, não viam assombração nenhuma. Mas se o Vicente fosse sozinho, o saci aparecia e ficava jogando terra no rio.

O povo falava que o coisinha ruim não aparecia pra Dona Rosalina porque ela era benzedeira. De fato, no clarão do dia o saci não dava as caras pra ela, mas quando escurecia ele aprontava.

À noite, Dona Rosalina sempre cozinhava canjica e deixava o doce descansando no fogão a lenha. De madrugada, vinha o danado, comia os milhos e vomitava de volta um caldinho.

É por isso que o povo da roça não come canjica amanhecida. Nem canjica, nem outra comida porque o saci adora fuçar nas cozinhas.

Cobra que Mama


Dona Rosalina era uma senhora muito sabida que benzia o pessoal do Rio do Peixe, tirava quebranto e era benzedeira de cobra também.

Antigamente, quando uma mulher tinha nenê, o povo já ficava preocupado pois sabia que podia aparecer a Cobra que Mama.

Naquela época não tinha luz elétrica e a cobra entrava na casa sem ninguém perceber. Depois de um tempo dando mamá, a mãe dormia com a criança no colo e era aí que a cobra chegava...

A cobra subia na cama, tirava a boca do nenê do peito e dava o seu rabinho pra criança chupar. A mãe não percebia nada porque estava dormindo, por isso, a cobra mamava até cansar e, às vezes, chegava a babar leite.

Dizem que quando a cobra era muito esperta, ela mamava tanto que o leite da mãe ia secando aos poucos, até que acabava.

Dona Rosalina benzia as mães que secavam por causa da Cobra que Mama, tirava ar da cabeça e também puxava a reza nos enterros, antes da rede chegar na cidade.

Ar da cabeça


O benzimento de tirar ar da cabeça não era só a Dona Rosalina que fazia, as benzedeiras da cidade, também.

Se alguém tinha enxaqueca ou qualquer dor dessa natureza, a benzedeira colocava uma garrafa cheia na cabeça da pessoa, então, o vidro esquentava e a água começava a borbulhar.

Conforme as bolhas iam acabando, a dor de cabeça ia sumindo. Assim que parava de borbulhar, o sujeito já estava sem dor nenhuma.

Cortejo da rede


Naquele tempo, o enterro era bem diferente de hoje. Quando morria alguém na roça ou num bairro afastado do cemitério do Avareí, vinha uma pessoa na cidade arrumar a papelada do enterro e comprar pano para fazer a mortalha do defunto. Geralmente quem fazia isso era o inspetor de quarteirão, o responsável pela região onde morava o falecido.

O tecido era comprado na loja do Seu Salomão e ele abria o estabelecimento a qualquer hora do dia ou da noite, sempre que precisasse. As mulheres costuravam a mortalha na mão. Depois que terminavam, o carretel e o pano que sobravam eram enterrados com o defunto, se não, ele voltava pra buscar.

Dependendo da distância, o cortejo saía de madrugada porque a caminhada levava horas para chegar até a cidade. Antes da rede sair, as pessoas tomavam um café reforçado pra agüentar o tranco.

Os homens colocavam o defunto na rede e depois ela era amarrada em um bambu bem forte.
Um homem pegava na frente, outro atrás e o povo seguia em direção à igrejinha do Cruzeiro, no São João.

A rede vinha balangando pelo caminho, com o povo atrás, até chegar na capela.

Dona Francisca morava no caminho por onde passavam as redes e já viu muitos cortejos de sua janela, um deles foi o de um tropeiro do Morro do Tatu.

Tinha chovido no dia do enterro desse tropeiro, por isso, a terra ficou lamacenta e escorregadia. Os dois homens que carregavam a rede penaram pra descer o morro e quando chegaram lá embaixo, coçaram a cabeça ao verem um brejo bem no caminho pra cidade.

O povo ficou cabreiro, metade achou que era perigoso atravessar o brejo, outra metade achou que não e no fim, todo mundo resolveu seguir adiante porque não tinha outro caminho.

Mas na verdade tinha...

Do outro lado do Morro do Tatu existia uma trilha que não passava pelo pedaço alagado, só que as pessoas do cortejo não sabiam disso.

Então, já quase chegando no brejo, o defunto tirou a cabeça pra fora da rede e, apontando o dedo, falou:

- Quando eu era vivo, eu passava por lá.

E o povo, perna pra quem tem.


Dona Francisca também já viu um cortejo com uma pessoa só, o próprio defunto. Era um capataz lá dos lados do Bom Jesus, tão cruel que quando ele morreu colocaram seu corpo dentro de um carro de boi, ninguém quis levar o defunto até a capela.

Mas o comum era ter cortejo com gente. E quando as pessoas chegavam na igrejinha do Cruzeiro, tiravam o morto da rede e começava o velório. Tinha uma caixa para guardar as redes, mas ninguém sentava nela, o povo ficava o velório inteiro em pé.

Acabado o velório, o cortejo partia pro cemitério do Avareí. O morto era colocado numa cova e depois traziam a rede de volta pra ser lavada e servir pra outro.

Os enterros foram desse jeito, por muito tempo.

Até que numa ocasião, o médico Joaquim Mendonça viu um enterro desses e ficou com muita pena. Então, o doutor reuniu alguns ricos da cidade e eles financiaram uma funerária. A partir daí, os enterros mudaram.

O cortejo da rede rumava pra capela do Cruzeiro, chegando lá, alguém ia até a Santa Casa emprestar o caixão e trazia também um pano branco para colocar o falecido. O defunto era tirado da rede e colocado dentro do pano branco, que depois recebia uma costura.

Dentro desse tecido parecido com um saco, o morto era ajeitado num caixão bege fosco. Se o defunto fosse criança ou virgem, o povo enfeitava o túmulo com galão branco.

Terminada a arrumação, o caixão seguia para o cemitério do Avareí. Os parentes pegavam o morto que estava dentro do saco e enterravam na cova. Na volta, devolviam o caixão pra Santa Casa.

Festas na Roça


Mas nem só de enterro vivia o povo da roça. Antigamente existia muita festa também, uma delas era a da carpição.

Os fiéis comemoravam a Festa da Carpição em mais de uma igreja. Uma bem conhecida era a da igreja dos Remédios, que fica na divisa de Guararema, na mesma região onde morou o Bartolomeu do sal.

A Carpição de Santana, que também era famosa, acontecia toda primeira segunda-feira de agosto. Nessa data, o povo da roça não trabalhava porque era o dia inteiro de reza e de festa.

As romarias vinham de todos os cantos, em charretes e carros de boi enfeitados com flores e fitinhas coloridas. O povo chegava com roupa de missa e descalço. Ninguém dava importância pra sapato na roça e quem tinha guardava pra ir à cidade. Já um terninho, todos os homens tinham.

Cada família levava o que queria, frango, paçoca, biscoito e todo mundo comia à vontade.

A carpição era para pagar promessa. As pessoas cavocavam a terra, colocavam um punhadinho num pano e levavam pra outro canto, faziam isso três vezes. Quando a pessoa estava doente, amarrava um lencinho com a terra e colocava em cima do lugar dolorido.

O povo não sabe direito como começou essa festa, mas dizem que foi invenção de gente graúda que queria empregado para carpir a terra.

Alguns contam que existia uma fazenda com um desbarrancado e que o dono queria aterrar uma várzea, por isso, ele inventou a festa pro povo baldear a terra de um lugar pra outro.


Festa de São Benedito tinha muito naquele tempo, na roça e na cidade. E era tradição os devotos dançarem congada, moçambique e distribuírem doce pra todo mundo.

Outra festa que o povo fazia era a de São Gonçalo, que existe até hoje. Dizem que São Gonçalo era um santo muito festeiro, por isso, o povo paga promessa pra ele dançando.

A cantoria e a dança varavam a noite, enquanto os violeiros tocavam, os fiéis batiam as mãos e os pés. Nas paradas era servido biscoito e café adoçado com rapadura.

No altar de São Gonçalo sempre tem São Benedito, dizem que eles são santos “compadres”. Se numa festa de São Gonçalo fechar o tempo, é só colocar o São Benedito no altar que o céu abre de novo.

O trem, o colégio e a luz


Mas as maiores festas da época aconteciam na cidade. E não era só festa, naquele final de 1800, Jacareí também vivia um período de muita prosperidade e agitação.

O trem chegou aqui em 1876 e a diversão de todo mundo era ver a Maria Fumaça passar.

O Largo do Bonsucesso podia estar lotado, mas quando o povo ouvia o apito conhecido, todo mundo corria pra estação. Não tinha quem não vibrasse ao ver as locomotivas gigantes chegando, soltando aquela fumaceira e trazendo os passageiros de outras cidades.

O bairro do Caldeirão Queimado ganhou esse nome porque as mulheres de lá deixavam a comida no fogão a lenha e saíam correndo para ver o trem, quando elas voltavam estava tudo queimado, comida e caldeirão.

Assim como o Saci tinha vários assobios, o trem também tinha vários tipos de apito e nunca passava batido. Sua chaminé baforava notícias, alegrias e saudades.


Em 1893 foi fundado aqui o Colégio Nogueira da Gama, que na época só não era melhor que o Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro.

A fama do Nogueira da Gama fez Jacareí ser conhecida como “Atenas Paulista” e atraiu alguns alunos ilustres, como o poeta Cassiano Ricardo. O colégio era tão chique que tinha até um viaduto ligando os dormitórios dos estudantes ao prédio da escola, e isso foi feito para impedir os moços de saírem na rua.

A luz elétrica veio em 1895 e Jacareí foi a primeira cidade do Vale do Paraíba e a sétima do Brasil a ter iluminação. Mas no começo, só as ruas do centro tinham luz elétrica, as dos bairros continuaram com lampiões de querosene e lamparinas.

Durante um tempo foi assim, todos os dias, às seis da tarde um funcionário da “Companhia de Força de Luz Jacareí-Guararema” passava de bicicleta acendendo as lâmpadas elétricas do centro e às seis da manhã ele vinha apagando, uma por uma.

A Padroeira e o Divino


No começo de 1900, as maiores festas de Jacareí eram a da Padroeira e a do Divino.

A Festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição era muito bonita e durava dez dias. O povo da roça vinha a pé para cidade, cada um com seu par de sapatos pendurado nas costas. Quando o sujeito estava chegando, ele calçava o par e só tirava no último dia de festa.

Toda noite tinha reza e festa no Largo da Matriz, com comida, música e leilão de prendas.

No dia da Padroeira, oito de dezembro, saía a procissão com os fiéis, as mulheres com véus na cabeça e as crianças vestidas de anjinhos.

Naquela ocasião, namorar era só com os olhos, mas a moçarada da cidade e da roça aproveitava esses momentos para paquerar e passear.

Muitos pais não deixavam as filhas se divertirem à noite, elas só podiam participar da novena e da procissão. Mas a santa acabava ajudando e a verdade é que desta festa saiu muito casamento.

A Festa do Divino, a mais animada de todas, geralmente caía no mês de maio e durava oito dias.

Nos sete primeiros dias tinha reza e cantoria dos músicos que percorriam as casas tocando viola e tambor, arrecadando prendas. Depois da reza, o povo ia pras festas do Largo da Matriz, que tinha barraquinhas de comida, brinquedos pra criançada e a Banda Velha no coreto.

No penúltimo dia da festa, os fazendeiros e os festeiros doavam alimentos, principalmente carne, sal, arroz e feijão. Os carros de bois saíam pelas ruas da cidade enfeitados com bambus, flores e bandeirinhas e distribuíam todo tipo de comida pra quem necessitasse. Era uma fartura.

O desfile seguia com a banda de música e terminava na cadeia com a distribuição de alimentos para os presos.

Depois disso, começava no Largo do Bonsucesso o leilão de prendas e garrotes arrecadados durante a semana.

No último dia da festa saía a Procissão do Divino, apinhada de fiéis e ao som do foguetório. Quando acabava a procissão, o festeiro servia um jantar para a população e anunciava o festeiro do ano seguinte. Então, a festa continuava com música e comilança, era bolinho com dobrado, caldo de cana com polca e sorvete com valsinha.

Depois disso muita coisa aconteceu...

Veio a Barca do Paiva, que atolou no rio com todas as autoridades de Jacareí.

Veio o cinema mudo, que tinha um pianista e uma tela que pegava fogo.

Veio o automóvel à manivela, que precisava de uma corrente para subir o morro.

Veio o Mercado, que vendia as galinhas de ponta cabeça, penduradas na manguara.

Veio o primeiro avião, que fez o povo se benzer achando que era assombração.

Veio o rádio, que apresentou os galãs das ondas curtas pras mocinhas suspirantes.

Veio a Segunda Guerra Mundial, que levou o corneteiro João Américo.

Veio o carnaval, que tinha colombinas e as marchinhas do José Maria de Abreu.

Veio a procissão das almas, que assustava os moradores do Avareí.

Veio um monte de enchente, que fazia o povo andar só de barco na cidade.

Muita água rolou nesse Paraíba, que continua levando e trazendo as histórias dessa gente, tudo o que se conta daqui...