O Que se Conta Daqui...

Pra quem gosta de escutar ou criar causo... Bem vindos! Tatiana Baruel e Érica Turci

Minha foto
Nome:
Local: São José dos Campos, São Paulo, Brazil

quarta-feira, novembro 08, 2006

Cortejo da rede


Naquele tempo, o enterro era bem diferente de hoje. Quando morria alguém na roça ou num bairro afastado do cemitério do Avareí, vinha uma pessoa na cidade arrumar a papelada do enterro e comprar pano para fazer a mortalha do defunto. Geralmente quem fazia isso era o inspetor de quarteirão, o responsável pela região onde morava o falecido.

O tecido era comprado na loja do Seu Salomão e ele abria o estabelecimento a qualquer hora do dia ou da noite, sempre que precisasse. As mulheres costuravam a mortalha na mão. Depois que terminavam, o carretel e o pano que sobravam eram enterrados com o defunto, se não, ele voltava pra buscar.

Dependendo da distância, o cortejo saía de madrugada porque a caminhada levava horas para chegar até a cidade. Antes da rede sair, as pessoas tomavam um café reforçado pra agüentar o tranco.

Os homens colocavam o defunto na rede e depois ela era amarrada em um bambu bem forte.
Um homem pegava na frente, outro atrás e o povo seguia em direção à igrejinha do Cruzeiro, no São João.

A rede vinha balangando pelo caminho, com o povo atrás, até chegar na capela.

Dona Francisca morava no caminho por onde passavam as redes e já viu muitos cortejos de sua janela, um deles foi o de um tropeiro do Morro do Tatu.

Tinha chovido no dia do enterro desse tropeiro, por isso, a terra ficou lamacenta e escorregadia. Os dois homens que carregavam a rede penaram pra descer o morro e quando chegaram lá embaixo, coçaram a cabeça ao verem um brejo bem no caminho pra cidade.

O povo ficou cabreiro, metade achou que era perigoso atravessar o brejo, outra metade achou que não e no fim, todo mundo resolveu seguir adiante porque não tinha outro caminho.

Mas na verdade tinha...

Do outro lado do Morro do Tatu existia uma trilha que não passava pelo pedaço alagado, só que as pessoas do cortejo não sabiam disso.

Então, já quase chegando no brejo, o defunto tirou a cabeça pra fora da rede e, apontando o dedo, falou:

- Quando eu era vivo, eu passava por lá.

E o povo, perna pra quem tem.


Dona Francisca também já viu um cortejo com uma pessoa só, o próprio defunto. Era um capataz lá dos lados do Bom Jesus, tão cruel que quando ele morreu colocaram seu corpo dentro de um carro de boi, ninguém quis levar o defunto até a capela.

Mas o comum era ter cortejo com gente. E quando as pessoas chegavam na igrejinha do Cruzeiro, tiravam o morto da rede e começava o velório. Tinha uma caixa para guardar as redes, mas ninguém sentava nela, o povo ficava o velório inteiro em pé.

Acabado o velório, o cortejo partia pro cemitério do Avareí. O morto era colocado numa cova e depois traziam a rede de volta pra ser lavada e servir pra outro.

Os enterros foram desse jeito, por muito tempo.

Até que numa ocasião, o médico Joaquim Mendonça viu um enterro desses e ficou com muita pena. Então, o doutor reuniu alguns ricos da cidade e eles financiaram uma funerária. A partir daí, os enterros mudaram.

O cortejo da rede rumava pra capela do Cruzeiro, chegando lá, alguém ia até a Santa Casa emprestar o caixão e trazia também um pano branco para colocar o falecido. O defunto era tirado da rede e colocado dentro do pano branco, que depois recebia uma costura.

Dentro desse tecido parecido com um saco, o morto era ajeitado num caixão bege fosco. Se o defunto fosse criança ou virgem, o povo enfeitava o túmulo com galão branco.

Terminada a arrumação, o caixão seguia para o cemitério do Avareí. Os parentes pegavam o morto que estava dentro do saco e enterravam na cova. Na volta, devolviam o caixão pra Santa Casa.